quarta-feira, 18 de julho de 2007

3 mini-romeo... novo mundo 9



Jogos de mulheres

Palmas das mãos, negras, gretadas, viradas para cima. Cartas de jogar enrugadas, amarelecidas e praticamente ilegíveis. Tabuleiros de gamão descascados, empoeirados, deixando prever ainda muito uso. No bazar perpendicular à muralha, misturam-se prognósticos de grandes amores e de elevadas fortunas, de sangrentas vendettas e de casamentos firmados sobre gordos maços de rupias. Uma mulher, de estatura mediana, envergando uma blusa branca, calças de caqui e com a cabeça coberta com um longo lenço castanho cor de mel, ajeita no nariz os óculos de armações grossas e escuras. Os turbantes multicolores dos anciãos movem-se ao mesmo ritmo dos seus gestos graves mas alegres. Aqueles anciãos, que ali se acomodam há já uma vida, sorriem-lhe deixando espreitar para profundas cavidades escuras e dentes de uma brancura reluzente. Sente-se Senhora, partilhe uma chávena de chá e um joguinho. O seu guia, desesperado, tenta dissuadi-la. Uma gota daquele líquido infecto pode provocar-lhe uma longa e dolorosa disenteria. Rute aceita. Senta-se, cruzando as pernas delicadas sobre o solo duro, caindo por momentos sobre um dos homens mais novos. Desfigurado pela cegueira, e pelo corpo mal nutrido, ele ri, ri, descaradamente. Faz muito tempo que não experimenta sequer um mínimo contacto com um indivíduo do outro sexo. Com a face enrubescida pelo toque do corpo feminino, desvia sorrateiramente o que lhe resta do olhar, procurando algo através da blusa da mulher, tecida num algodão impenetrável ao calor, aos insectos e aos esgares mais ousados dos homens do país.
Malik senta-se ao lado de Rute, esperando que esta, após ter bebido a última gota, dê início à inevitável procura de uma latrina no meio daquele descampado de porcaria. Impávida, ela declina brandamente o convite seguinte, um jogo de gamão. Faz-se tarde. Tenho de me pôr ao caminho. Deixe-me ler a sua mão, pede-lhe um palmista. Só lhe custa uma rupia. Não vale a pena. Só a Deus cabe dar as cartas do futuro, diz muito séria, perante grande desânimo do mago, conformado, porém a contra gosto, com as convicções disputadas pelos seus companheiros.
Vamos Malik. Regressam pelo caminho inverso, perdendo-se desta vez pela avenida dos vendedores de perfumes contrafeitos e das pipocas azuis, violetas e carmins. A mistura de odores é estonteante, mais ainda quando se aproximam das fossas abertas.
Um rickshaw passa tão rápido como se fosse conduzido por um anjo maltrapilho. Stop, diz Rute, que salta feliz para a parte traseira do veículo, enquanto Malik lhe lança muitas reprimendas “Mulher, uma estrangeira, não faz figuras dessas”.
Impassível, uma anciã, de cabelos grisalhos apanhados no topo da cabeça, envergando uma schalwar kamiz florida, cruza-se com eles, num passo sereno. Olha Rute sem pestanejar, atirando-lhe um sorriso estranho. “Finalmente, descobriste a tua liberdade”.

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