domingo, 12 de agosto de 2007

Josephine tinha conhecido mal o tio... novo mundo 24


MALUART DE SOMESBY

Numa tarde de Abril, julga-se que passaram entretanto uns trinta e dois anos, o senhor Somersby deixara de fazer parte da memória dos vivos para se aninhar sob uma pequena lápide, apagada, muito comida pelo tempo. Josephine, a sua sobrinha predilecta, tentava, em vão, sublinhar os caracteres que singelamente Jonas, o seu irmão mais velho, e por isso também um sobrinho do senhor Somesby, tinha encomendado ao lapidador que cravara o pesado bocado de basalto embaciado pelo ar gelado daquela colina de Maluart. Quase imperceptível, do curto epitáfio constavam algumas palavras elogiosas “… Somersby, ilustre benemérito….”. Josephine dava voltas às suas memórias de criança. Nada. Não conseguia perceber o significado do discurso. As boas acções de Somersby teriam ficado guardadas como um bom segredo de família, não fosse, outrora, o tão distinto cavalheiro, ter entrado nas conversas rotineiras dos habitantes de Maluart.
Era um indivíduo afectado mas discreto, com os enormes olhos negros cor de azeitona, que tinha por hábito abanar vigorosamente a cabeça, da qual ainda pendiam alguns tufos acinzentados, cobrindo uma calvíce pouco desejada.
Josehine conhecera muito mal o tio. Mas sabia, todos tinham aliás ficado a saber, que Somersby cometera uma excelente proeza em nome do monarca de Benit, quando, cinco décadas antes, dirigira, por acaso, a defesa de Maluart, a capital do reino, contra a maior manifestação de insurrectos, promovida por uma centena dos prisioneiros mais violentos da cidade. Pediam luz, latrinas e pão. Somersby, perante a inactividade dos seus co-cidadãos, inclusive do rei de Benit, apresentava-se como a potencial chave para o problema. De antemão, não tinha como satisfazer os pedidos dos condenados Havia já dois anos que a capital estava submersa por uma estranha escuridão. Nem os mais reputados cientistas do país, ou todos aqueles que tinham sido enviados pelos monarcas estrangeiros, conseguiam encontrar explicação para o fenómeno. Os cidadãos livres, mas sobretudo os mais abastados, recorriam, conforme a fortuna, a sistemas alternativos de iluminação… combustíveis, velas, sentindo, porém, todos os dias, uma crescente apreensão. O stock atingia praticamente o seu limite. Ainda assim, habitavam em Maluart quinhentas pessoas, sem contar com todos os criminosos, que, talvez até superassem a população em liberdade, o que implicava um gigantesco consumo de energia, para um pequeno reino, que dependia integralmente do exterior. Benit comprava praticamente tudo aos seus vizinhos, excepto as suas requintadas mantas de lã de ovelha. Por outro lado, havia alguns meses que o moderno sistema de condutas de água e de saneamento ruíra, infestado por uma praga de armadilos, vindos ninguém conseguia saber de onde. Maluart era uma cidade moderna, longe de qualquer lixeira, suficientemente distante de tantas aldeias putrefactas do reino, para onde tinham sido atirados os homens e mulheres de moral duvidosa. Este era um rótulo algo ambíguo. Mas também uma afirmação que traduzia a vontade real.
Por último, mal não menor, o fabrico de pão constituía um enorme dilema. Somersby não dispunha de meios para aumentar a produção daquele alimento básico, não só dada a escassez de combustível, da água potável, mas também devido à fraca produção de cereais, cujas colheitas, devido à falta de luz natural e de água, definhavam de dia para dia.
O senhor Somersby via-se na contingência de lançar um plano muito pouco popular. Propor o envio dos condenados mais violentos para as mencionadas aldeias de moral duvidosa, ou ser ainda menos magnânimo, e sugerir medidas mais drásticas como o extermínio de, pelo menos, metade daqueles proscritos para assegurar a sobrevivência da restante população. Nenhuma das soluções se lhe apresentava interessante. Além de mais, era apenas provisória.
Uma tarde, Somersby resolveu falar com o monarca. Encontrou-o deitado numa chaise longue de damasco escarlate, que lhe fora oferecida pelo rei mais próximo, o seu primo Viziar. Parecia-lhe demasiado parado, quem sabe dormitando sobre os seus dissabores ou apenas entorpecido pelo calor do meio-dia. Somersby transpirava no seu fraque negro, muito alinhado, apesar da tremenda temperatura que, quer no caminho até à casa real, quer no interior do palácio, se fazia sentir. Naquele ano, a primavera mostrava-se particularmente quente para o habitual.
Meu Senhor, creio que foste informado que tínhamos audiência marcada para esta hora. Pelo menos assim o comuniquei ao Vosso primeiro-oficial.
Anuindo com a cabeça, o rei acenou-lhe, displicente, mostrando-lhe um confortável cadeirão, estrategicamente colocado ao lado da chaise longue onde se encontrava reclinado. Deveria sentar-se. E, de forma, que ele, o rei, não tivesse de denunciar qualquer movimento pouco satisfatório para o seu tão fatigado corpo. Todos aqueles problemas causavam-lhe uma terrível tensão mental e física, que o seu médico pessoal não se cansava de tentar resolver. Sem êxito. O rei deixara de puder praticar exercício, praticamente não bebia os seus habituais refrescos de framboesa batida em cubos de gelo de água do rio de Maluart – outrora conhecido pelos seus rápidos efeitos sobre os mais diversos achaques, graças às suas águas medicinais. Já nem sequer podia mordiscar os seus muffins preferidos, feitos de farinha de trigo e de avelãs, ao pequeno-almoço, porque o pasteleiro real reclamava sistematicamente contra a qualidade de toda a matéria-prima armazenada na dispensa do palácio.
Sua majestade estava de humor muito sombrio naquele início de tarde. Somersby receava não trazer boas notícias. No palácio apenas as moscas se deleitavam em mordiscar as mãos dos vassalos que abanavam em vão o monarca, com uns gigantescos leques oriundos do sudeste asiático, tentando diminuir os efeitos do calor.
Somersby afastava os insectos com um gesto rápido da testa, mas principalmente dos lábios. Teimosas, não desistiam de interromper a todo o custo o muito estudado discurso, que preparara para o rei. Na realidade, era mesmo muito breve o que tinha para lhe expor, demasiado inconclusivo para se tornar a solução para os mais prementes problemas do reino.
Que notícias me trazes Somersby? Espero que boas!
Senhor, não sei por onde hei-de começar. Nenhum dos vossos mais aptos cientistas, filósofos, teólogos, artesãos ou cidadãos honrados, consegue decifrar os males que nos atingem. Tenho debatido, com muitos deles, incansável, todas as questões, mas julgo que estamos a esgotar o tempo. Há já quem já afirme que um ou alguns de nós provocámos a ira de Deus.